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quinta-feira, abril 29, 2004

75 mulheres
(canto para o menino de 2004)



Quero chegar logo aos doze anos. Meu irmão, quando saiu com aquele ar entre sombrio e feliz, me deu um até logo que não sai da minha cabeça. Agora, na foto de seu altar, ele sorri vitorioso. Disse que teria 75 mulheres.
Meu pai fala que tenho de ser igual a ele, que irei para o lado de Alá e terei 75 mulheres. Seria bom, 75 mulheres. Se todas forem como minha mãe, que chora à noite escondido de meu pai e diz que me ama nessas horas, será ótimo. Setenta e cinco mães para me proteger dos homens que carregam a estrela da destruição.
Ao lado do muro, ontem, joguei uma pedra na bandeira azul com a estrela de seis pontas. O pano rasgou e meu pai me disse que, logo, logo, teria minhas setenta e cinco mães...

quarta-feira, abril 28, 2004

Canto para o menino de 45




A minha estrela tinha seis pontas. E me aquecia naquela noite fria, naquele campo. Não sei porque todos o chamavam de campo. Campo, pra mim, sempre foi um lugar bonito, verde, onde íamos aos domingos comer torta. Aquilo não era campo. Parecia um amontoado de conhecidos, todos tristes, que não viam a estrela no céu. Minha estrela de seis pontas.
A estrela deles era quadrada. Uma estrela com as pontas quebradas. Não vi estrela mais sem graça em toda minha vida.
Minha estrela de seis pontas me aquecia naquela noite. E a noite ainda não acabou dentro de mim. Mas a estrela, agora, tem a companhia das outras estrelas, que se apagaram naquele dia em terra e foram brilhar no céu. Ao lado da estrela que não se apaga em mim...

terça-feira, abril 20, 2004

Diários do céu



Um dia, a paisagem cansa. Um dia, a beleza cansa. Um dia, tudo o que não tem alma cansa. Tudo carece de uma “razão inexplicável” para existir.
Tentei ser materialista, juro, mas não consegui. Também, já tentei ser monge. E, longe disso, me arriscava em todo o tipo de sentimentos tipicamente pequenos, tipicamente humanos. Arranhava o céu com pequenos pulos, mas nunca tinha arriscado voar.
Até que um dia, numa colina (essas coisas sempre acontecem em colinas), senti um vento mais forte e me joguei: “é nesse que eu vou”.
Outro dia, li num jornal, que estavam tentando matar o mundo a facadas. Como um super-herói, voei o mais alto que pude. Queria ser um super-homem de meia-idade. Mas voei tão alto, que não consegui mais regressar. Desde então, escrevo na cabeça pequenas peças para não enlouquecer.
E o mundo? O mundo já está azul...

sexta-feira, abril 16, 2004

essa é a versão original do conto que saiu no Estado de Minas do dia 13 de abril. Por motivo de espaço no jornal, o conto que saiu foi editado e resumido demais. O título também não foi o original, mas isso eu não entendi o motivo. Sem mais delongas, aí vai o conto...

MARIA

Trajava um vestido vermelho brilhante colado ao corpo. A julgar pelas botas, levemente sujas de terra vermelha, morava na periferia. A corrida até o ônibus manchara ainda mais o rosto, coberto vulgarmente pela maquiagem. O trocador olhou-a reprobativo, entregou o troco sem a encarar e não deu “bom dia”.
Estava acostumada. Tomou o último lugar e acendeu um cigarro. O olhar perdido só se iluminava quando algum letreiro refletia-se em suas retinas. Alguns passageiros começaram a comentar algo e a olhá-la com sorrisinhos serrados. Mas ela não chorava, não se alterava, apenas continuava a fumar. Seus olhos miravam o infinito, mas sua consciência fitava o mais profundo da alma. Forte. Desde nova secara o pranto e só o usava quando lucrasse algo com ele. Maria, seu nome.
O coletivo varava as ruas semi-desertas do centro velho da cidade. Os últimos bêbados eram expulsos pelos donos dos botequins da rua Guaicurus, que queriam voltar logo para casa e sossegar no quente das suas donas. As prostitutas no alto das janelas do Maravilhoso Hotel avisavam aos clientes que só abririam às oito. Filhos da rua aqueciam-se em seus cobertores São Vicente e seus saquinhos mágicos de cola de sapateiro, onde alcançavam um outro mundo, onde eram vitoriosos malandros da noite sem fim. A vida escorria lenta e vazia a essa hora do dia.
Maria nem percebia o que a cercava. Lembrava da noite passada, do homem de sobretudo vermelho que pedira-lhe um beijo. Arrepiara. A maioria dos homens que a procurava nas noites vazias tinha-lhe nojo. Prostituta não beija. Alguns, segregados da vida pela doença ou pela falta de beleza, tentavam roubar-lhe a boca. Suplicavam por essas carícias. Ela não os dava.
Mas o homem de sobretudo vermelho era diferente. Quando a olhou daquele jeito e sorriu, algo se acendeu em sua alma. Quem sabe a vida poderia ser diferente? Ele a mordeu nas nádegas, mas ela não se queixou. Sentira prazer como a muito não experimentava. Gemeu. O beijou e pensou ser tudo aquilo um sonho bom. Abraçou-o e o amou. Não fez o sexo mecânico de sempre, contando os minutos. Sentiu a alma elevar-se para aquele lugar onde as almas se abrigam na hora do sexo e que só sabe quem fez amor alguma vez na vida. Ele sorria como quem protege e diz: “não tens com que se preocupar, estou aqui e nunca te abandonarei”.
“O que acontece quando morremos?” disse ele. “Não sei. Só Deus pode dizer...”, respondeu Maria. “Não!”, interpelou e continuou: “Descobrimos a verdade. A grande dúvida do ser humano cessa nesse momento. Inconscientemente, procuramos a morte para viver. Pois viver é descobrir a verdade. E qual verdade maior que a ‘grande verdade’? Então, morremos para viver. A fé em um Deus que mora num paraíso é uma desculpa para quem não dá o braço a torcer. A fé não explica nada. A morte, sim”. Maria não entendeu direito e sentiu medo de morrer. Não queria descobrir verdade alguma. Sua maior ambição, mesmo que não tivesse consciência ainda, era continuar vivendo ignorante, como todo mundo.
Lembrou que a carne tinha aumentado novamente e que teria de comer frango nos dias de semana por um tempo. Acendeu outro cigarro e fitou as portas das lojas semi-abertas. É nessa hora que os trabalhadores convencionais chegam para outra feita. Amanhecer para o trabalho era algo que não conhecia na vida, mas seus olhos de colegial nunca descansariam antes de tornar realidade o sonho de sua mãe.
No seu tempo de estudante secundarista era uma menina bonita. Seu corpo desabrochou cedo. Todos notaram que o rebolado convidativo pedia para experimentar o sexo da mesma forma que a mente suplicava por apaixonar-se. Apaixonou-se, entregou-se – mesmo não sabendo se já era a hora de tornar-se mulher – sofreu, amadureceu... matou e morreu várias vezes. Seu corpo não resistiu ao tempo, sua alma desbotou. Mas o olhar ainda contém a velha chama dos tempos de colegial. Menos ingênua, menos menina... melhor assim, chegara em casa.
Abriu devagar a porta da sala, adentrando sorrateiramente. Despiu-se completamente ali mesmo. Primeiro, o vestido brilhante, depois as botas, a calcinha vermelha de renda, as bijouterias. Colocou tudo dentro de uma sacola de supermercado que depositou no fundo da última gaveta do móvel que apoiava a televisão. Escondido atrás dos livros que ninguém nunca leu.
Naquela hora perdida do dia, em que não sabemos se ainda é noite ou não mais, ela se lavava vagarosamente com uma toalha úmida para não fazer o menor ruído. Os anjinhos pintados em porcelanas azuis – do tempo das famílias de trabalhadores italianos que ali habitavam à época do crescimento econômico – espiavam seu corpo nu e a condenavam com suas consciências de anjos barrocos. Escovou rapidamente os dentes e tomou um copo de leite para não sentir a úlcera que a acompanhava desde a adolescência. Sentiu no seu íntimo um frio intenso e o choro quase brotou à face. Não ganhava nada com isso, secou.
Abriu a porta do quarto, já eram quase cinco e ele logo se levantaria. Deitou-se ao lado dele e, ao ouvir um resmungo de quem ainda não sabe se acordou ou se está a sonhar, apenas respondeu: “o dia amanheceu cinza”. Deitou-se e dormiu pesadamente. Cinco horas.
Ele se levantou como fazia todos os dias. Fez a barba, aparou as pontas do generoso bigode que empunhava na cara desde quando notara que virara homem de verdade e fez seu café. Colocou o uniforme, acertou o boné e, antes de sair, deu uma chegadinha ao quarto. Sentou-se ao lado dela, a olhou de alto a baixo e viu uma pequena mancha arroxeada à altura das suas nádegas. Molhou o seu dedo com saliva e tentou limpar a marca que não saia. Beijou-lhe levemente, cobriu-a carinhosamente, levantou-se. Antes de sair, abriu sua bolsa e retirou certa quantia em dinheiro. Era preciso fazer a feira.

sábado, abril 10, 2004

Em algum lugar, no meio da vida, me perdi. Certamente, foi no dia em que descobri que para a pergunta não havia a resposta. Desde então, displicente, deixo a vida me levar. Sofro, às vezes; me alegro, outras; nasço e morro todo dia. E a minha sombra, penso, não confia mais em mim. Quem sabe um dia, por precaução, até deixe de me seguir.

quinta-feira, abril 08, 2004

às vezes a gente acorda lispectoriano:

“Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre”.
Clarisse Lispector

segunda-feira, abril 05, 2004

Ela segurava um dostoiévski



...esse é o conto completo, por enquanto.

Ela segurava um Dostoiévski como quem se protege. E, do outro lado da rua, a olhava assim, de pé à espera de algum vento mais forte que a levasse dali.
Aos nove anos entrou no curso de piano porque o pai achava de “bom tom” que a filha aprendesse esse instrumento e porque a mãe queria um móvel daquela classe para tapar o vão que sobrava na sala de visitas. Mas a música clássica não a tocou. Ela necessitava da letra. Precisava que a música dissesse algo mais. Precisava dizer algo de si. Queria fazer alguma coisa que a ensinasse a dizer o que necessitava para aplacar aquela pequena fera que hora despontava. O pai, a esta altura, disse que seria o piano ou o bordado. Enfim, cansada de procurar o que ainda não existia para si, saiu dos cursos e se entregou à escrita e à leitura dos livros que enfeitavam a estante de sua casa e da de sua tia, que era professora e foi quem primeiro disse a ela que “se ela acreditasse que conseguisse viver sem escrever, que não escrevesse”.

Ela segurava um Dostoiévski como quem se descobre, e deixa transparecer nos olhos úmidos a vontade de ser poesia.
Aos dezoito anos se entregou, entre escolha e escolhida, atrás do piano da sala de visitas, num gesto de ansiosa lentidão. Entre o calor que vinha de baixo e o frio na barriga de quase ser descoberta; entre o medo que os ensinamentos de sua mãe a impunham e a vontade de saltar de cabeça no imenso mar lispectoriano; entre ela e outra, escolheu viver. E viver era a retórica do silêncio, a angústia de pensar, o amor pelo amor. Não se transformou naquele momento como pensou que aconteceria, pois tudo se descortinou mais complexo que o maniqueísmo que ainda a dominava.

Ela segurava um Dostoiévski como que diz: me leva.
Foi quando saiu de casa. E de tudo que o seu pai disse, levou apenas a saudade do seu olhar vermelho. Saudade que sente até hoje, quando o mundo tenta esmagá-la e sua única vontade é se esconder atrás da Cecília Meireles.
Descobriu a capital com o mesmo fervor que um recém-nascido descobre que o mundo não se resume às paredes do útero da mãe. E tudo era maior e mais interessante.

Ela segurava um Dostoiévski como quem segura uma flor, que desabrochou rindo em seu colo; e que parece murcha aos olhos de quem passa, apressado, do outro lado da rua.
Foi quando o ônibus passou e a levou dali, e voltei a caminhar em direção à vida que me esperava, e já estava atrasado.

domingo, abril 04, 2004

Ela segurava um Dostoiévski



Ela segurava um Dostoiévski como quem segura uma flor, que desabrochou rindo em seu colo; e que parece murcha aos olhos de quem passa, apressado, do outro lado da rua.


sábado, abril 03, 2004

Se desse mais dois passos, caía. Um abismo de altura quase infinita, pois assim pareciam para suas pernas bambas de medo, se abria à sua frente.
Não sabia como, de repente, apareceu naquele local. Lembrava que estava assistindo ao Domingão do Faustão, comeu um amendoim torrado e, pá! estava na beirada e não conseguia, apesar de toda força que fazia, voltar atrás. Conseguia olhar de soslaio, e só via o deserto inóspito e seu fusquinha 64 abandonado.
Olhou pra cima, cegou ao sol, pra frente, não entendeu nada, novamente pra trás, e a Selminha estava nua em seu fusquinha. Pensou em pular, ver no que dava, o suicídio digno. Não conseguia voltar, ... a Selminha estava suando:
“Puta que pariu!”, e deixou-se cair de lado, num sofá do McDonalds.


sexta-feira, abril 02, 2004

Nasceu


se vai vingar, veremos...