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sábado, novembro 20, 2004

O Espelho



Maria Fernanda era a mais bela mulher que o mundo já conheceu. Não o mundo todo, deixemos claro, que nunca fora famosa para além da sua pequena cidade, no interior do Vale do Jequitinhonha.
Quando nova, nunca se destacara das outras da mesma idade. A mágica aconteceu aos quinze anos, no dia em que, debutante, se mostrou à sociedade local em seu vestido de seda branco e, como que por feitiço, nascia ali a mais formosa figura que jamais viram. Os olhos azuis se acentuaram. Eram como um recorte do céu límpido daquele inverno. Os cabelos negros e brilhantes, o contorno do rosto, o nariz e os lábios formavam um equilíbrio perfeito, mistura das muitas gerações que a antecederam, em que se fundiam italianos, alemães, índios e negros. E aquela pequena mancha localizada pouco à frente do lóbulo da orelha esquerda que, segundo um poeta local diria anos mais tarde, seria a assinatura de Deus em sua obra-prima.
Desde então, choveram pretendentes. Ricos, belos, figuras importantes da sociedade local. Vários filhos ilustres da capital se apaixonaram perdidamente por sua beleza. Mas ela nunca se alterava, jamais mostrava mais de cinco dentes ao sorrir. O certo é que nunca conhecera ninguém verdadeiramente. Todos se transmutavam perante aquela sua beleza avassaladora. Os homens se derretiam em elogios, ao mesmo tempo em que enalteciam a própria figura a fim de sempre impressioná-la. As mulheres, por sua vez, se remoíam de inveja e ciúmes. E houve até uma que se apaixonou perdidamente pela bela Maria Fernanda e, após a desilusão pelo amor impossível, se tornou freira enclausurada.
Aos dezoito anos, a bela se casou com o filho de um rico fazendeiro de uma cidadezinha vizinha. E nem aquele homem deixou de se espantar ao se deparar com a perfeição nua em sua primeira noite. Três dias passou, entre choro e lamentações, por aquela profanação. O sexo com ela se tornava, a cada dia, a figura exata da tragédia do pecado original. Só sentia prazer quando se atolava em luxúria no suor dos puteiros da cidade.
A cada ano que passava, Maria Fernanda ficava mais bela. Sóbria e trágica, vagava pela casa como um fantasma esquecido. Não se envolvia profundamente em nada, nem emprestava emoção a qualquer coisa que fosse. Seus filhos, que eram dois, iam crescendo e se afastando daquela mãe, bela e distante, que parecia habitar um mundo só seu.
No seu aniversário de trinta e cinco anos, a bela Maria Fernanda enviuvou. Seu luto fechado já durava nove meses. Não voltara à igreja desde a missa de sétimo dia do falecido marido, o que deu motivo a muitos para suspeitarem de que havia feito um pacto com o diabo para não envelhecer. Nua, em frente ao espelho, escovava os cabelos, que se tornavam milagrosamente mais brilhantes conforme o tempo passava. Seu corpo ganhara mais curvas, o que a tornara ainda mais desejável com a idade. Os seios continuavam firmes e belos. Não tinha sequer um detalhe a mudar. Terminou de se escovar e ficou se olhando no espelho, se tocando, sentindo o prazer trágico da beleza perfeita. Foi então que, num choque de espírito, socou o espelho e, mãos sangrando, retirou um dos cacos mais pontiagudos e abriu, em golpes certeiros, cinco talhos profundos em seu corpo.
Cinco anos depois, a Senhora Maria Fernanda Rodrigues engordara dez quilos e se casara com um caixeiro viajante que se apaixonou perdidamente por suas piadas de salão, que divertiam a todos, e pelo seu sorriso, que era solto e franco, e que mostrava, mesmo nas risadas menos empolgantes, todo o céu da boca.


terça-feira, novembro 02, 2004

Dois mini-contos ao vento



O quase suicídio

Na televisão, o pastor da Igreja da Ressurreição pregava aos seus fiéis de cara abobada, que levantavam suas bíblias aos céus como a um escudo e gritavam, todos ao mesmo tempo, enquanto ele falava. Cecília mudava de canal automaticamente até parar num filme pornográfico. Duas mulheres vestidas como adolescentes americanas entram num quarto, começam a conversar sobre os meninos do ginásio e se põem a trocar carícias, começando a transar. Ela se excita com os gemidos das garotas, se masturba com a calma de quem mora sozinha há cinco anos e desliga o monitor. A sala escura, o barulho que vem da rua movimentada do centro da cidade, seu coração ainda batendo pelo ritmo sexual da adrenalina que age, agora fracamente, em seu corpo, ditam o ritmo da sua vida. E tudo parecia igual a todas as noites. O telefone não tocava há dias e o sorvete no congelador já devia ter virado pedra. Ela suspira forte, como que para puxar um pouco de vontade de viver pra dentro dos pulmões, e daí para o sangue, num transporte passivo através daquele ar acre do seu apartamento. Mas lembra que, naquele ambiente saturado da sua própria existência, já não há força vital alguma há meses. Desiste.
E a caixa de remédios ao lado da cadeira convidam, incessantemente.

(sem título)

Eu escrevo com a pena leve
que é para não sair todo no papel