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sábado, abril 16, 2005

Alfredinho em dia de festa




Depois de tudo o que ela disse, o que se ouviu foi o tapa. Tão moralmente ensurdecedor que até os violinos emudeceram. Os pais da noiva fitaram-se no fundo da alma, coisa rara nos últimos anos, como que descrentes que aquilo estivesse realmente acontecendo na família. Uma amiga deixou escapar um sorriso vingativo entre os dentes. A noiva, temperamental como uma mulher de açougueiro, foi a única que não teve reação. O Alfredinho, que nunca levantou a voz, nem quando ela provocava absurdos para testar sua paciência. O nanico de óculos de aros tão grossos que aprisionariam um olhar mais leviano que porventura tentasse escapar. O homem que ela escolheu para viver sempre ao seu lado, como um segundo colocado que se coloca sempre um nível abaixo no podium...
O vexame social, a crise depressiva da noiva e o sumiço misterioso do buquê, tudo foi esquecido.
Anos mais tarde, olhando as curvas da Serra do Curral através da fumaça que esgotava seu charuto, o vinho decantando sobre a mesa, ele pensa, tão alto que a voz inconscientemente lhe escapa:
— Devia ter dado uma porrada!

sexta-feira, abril 01, 2005

Sir Lionard von Willebrand




Na sala do seu apartamento, decorado com penas de gansos tailandeses à maneira de um caracol, sir Lionard von Willebrand conversa animadamente com seu guarda-chuva.

Sir Lionard von Willebrand: os familiares se auto-aniquilam por amor (Pausa. Pensa no quão profundo podem chegar suas falas e no quanto o mundo poderia ser mais simples se todos o ouvissem. Continua). Ontem, me proibiram de comer um chocolate suíço. Disseram que iria fazer mal ao meu diabetes. Como se eu não soubesse disso. Sei que aquela generosa barra de paraíso iria inundar meu sangue de açúcar, não sou nenhum ignorante.

(pára, olha para a cara circunspecta do seu guarda-chuva... continua)

Sir Lionard von Willebrand: poderia ficar toda a vida comendo melões tailandeses. (pausa). E você, caro amigo. Acredita que, durante cinco anos, duvidei que pudesses falar?

Guarda-chuva: egocentrismo.

Sir Lionard von Willebrand: a verdade pode estar bem próxima de nós. Às vezes, basta olharmos para os lados... (olha bruscamente para trás, como se ouvisse um barulho estranho). Aceitas um vinho branco? Sei que me faz mal ao corpo, mas a mente agradece. (levanta-se até o bar)

(enquanto isso, Greta Garbo aparece rodopiando pela sala num vestido vermelho-sangue esvoaçante, faz um padêdê duplo, dá um salto no ar, cai fazendo uma escalada e some na fumaça. Ninguém se altera em cena)

Sir Lionard von Willebrand: como a igreja foi, há dois séculos, o ópio das massas, a internet, hoje, funciona como tal. Já reparou que ambas alienam o homem com a promessa de dádivas infinitas? Um outro mundo, onde somos iguais e podemos alcançar o infinito...

(o Guarda-chuva se abre como um gato arrepiado. Um gaiato na platéia grita: “sexto sentido!” Ninguém se altera em cena).

Sir Lionard von Willebrand: poderia ficar a vida toda bebendo um Bourdon. (olha, pensativo, para a taça e uma lágrima rola por sua face).

(Do local onde a lágrima caiu, brota uma rosa falante. O Guarda-chuva pisa na pequena flor, calando-a, após cinco minutos em que a mesma declamava Shakespeare num agudo meio-tom acima do humanamente suportável).

Sir Lionard von Willebrand: ontem, vasculhando umas velharias no sótão à procura do meu quebra-nozes de ouro, encontrei minha velha fórmula da geração espontânea de energia. Testei-a por curiosidade e ela ainda funciona (fala com desinteresse, petiscando algumas pupilas de elefante ao molho de nozes). Liguei para um cartório de patentes e perguntei como se faz uma doação ao bem comum. Eles não acreditaram em mim...

Guarda-chuva: o homem crucifica o que não consegue entender.

(Nesse momento, uma manada de elefantes com óculos escuros e bengalas passeia pelo palco. O mesmo gaiato grita da platéia: “cuidado, o elefante vai esmagar sua cabeça!”. sir Lionard von Willebrand o olha com superioridade enquanto termina seu vinho. A manada se esvai. Ninguém se altera em cena).

Sir Lionard von Willebrand: poderia ficar a vida toda bebendo um Bourdon...

(diz isso e cai sobre o prato oftalmológico. Da sua nuca, todos podem ver, o sangramento fatal. Um perito em balística texano entra em cena e tenta, inutilmente,explicar a teoria da bala zigue-zague que matou John Fitzgerald Kennedy. Novamente, ninguém se altera em cena).

(Alguns segundos, 78 mais precisamente, em um silêncio insuportável – a cena permanece congelada – o Guarda-chuva quebra o gelo, abaixa a calça, olha fixamente para o corpo e, calmamente, se masturba).

fim