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sábado, novembro 26, 2005

Com canela



Falava sempre num meio tom acima do necessário. Para qualquer assunto que a conversa caminhasse tinha uma tese própria, e a expunha com a soberania unânime dos que sabem, mesmo que sobre o mesmo não tivesse mais que uma leve idéia na memória. Mas era como se aquela certeza sobre o quer que fosse a alimentasse e fosse o sentido que precisava ter para continuar vivendo. Nos assuntos de família era ela quem organizava, na decisão final, o dito e o não-dito. E mesmo diante da resposta afirmativa do médico, ela manteve a clareza: “então, a única coisa que posso fazer é usar morfina e esperar a morte?”
O modo prático de encarar qualquer situação assustou o jovem médico, que chegou a ensaiar um: “e ficar ao lado das pessoas que você ama.”
— Então estamos conversados – e saiu calmamente, como em todas as consultas anteriores. Cumprimentou a secretária, que falava alguma coisa ao telefone e que só lhe respondeu com um sorriso, e fechou a porta sem bater.
Atravessou a rua, andou dois quarteirões, entrou na doceria que freqüentava há anos, e pediu um capuccino italiano. O mesmo dos últimos vinte anos. Sentiu a acidez deliciosamente desagradável da canela no céu da boca, como quando entrara pela primeira vez naquele lugar, no dia em que perdera a virgindade com o namorado eterno da prima mais velha. Iluminou-se um instante estalando a língua, o sabor forte da canela, a aspereza contrastando com o chocolate.
— Sem canela seria enjoativo – falou para ninguém.
Pagou a conta contando as moedas, a quantia exata, fechou a bolsa e a atravessou ao pescoço. Pediu a caneta emprestada com a garota do caixa e escreveu com sua letra de professora o número do CPF no braço esquerdo. Agradeceu com o sorriso adequado e saiu.
Mais três quarteirões à frente jogou-se, sem que ninguém notasse o movimento, à frente do ônibus que fazia a conexão Centro-Paraíso.