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sábado, dezembro 25, 2004

Depois da Festa



— Quando os homens erram, que o mundo peça desculpas...
Ele continuou calado. O olhar perdido entre a ignição e a rua escura à sua frente, que apontava o retorno. Dar a partida, colocar o cinto de segurança, olhar no retrovisor. Tudo o que aprendera aos dezoito anos nos carros de auto-escola. Pensava na sua instrutora, que usava saias acima dos joelhos, naquele sorriso provocativo. Ela era casada e tão naturalmente sedutora que até podia se dar ao luxo de ser pobre de espírito.
— Estou esperando... você vai continuar caladão aí?
O sinal de trânsito ofuscado pela chuva... era muito mais perigoso quando a chuva caía à noite. Se derrapar? Frenar, o nome certo era frenar. Diminuir a marcha, manter a curva aberta, os punhos cerrados num movimento amplo. Não ser brusco e nunca, nunca frear. Não deixar que o carro fuja do controle e ter a calma para não procurar a solução mais fácil: o pedal do meio.
Ela começou a chorar. Ela sempre chorava para desarmá-lo. Desde quando namoravam, suas brigas sempre terminavam com ele se desculpando. Olhou de lado para ter a certeza de que era mesmo choro e que o barulho da chuva não o estava enganando. Ela estava com a cabeça voltada para o outro lado, limpando os olhos da maquiagem que escorria. Ele baixou os seus.
Sinal fechado. Diminuir a marcha, frear, com o pé esquerdo na embreagem. Parar. Passar para o ponto morto, retirar o pé da embreagem. Descansar.
— O pior, de tudo o que você apronta, é quando finge que não me ouve – a mulher pára um instante, olha em sua direção, espera uma reação contrária que fosse da parte dele, e continua – você não tem humildade, nunca teve. Se acha superior, um intelectual. É nisso que dá ter casado com alguém que não acredita em Deus. Acha que tudo isso é uma besteira. Agnóstico, tá bom! Nem me acompanha à igreja. Onde já se viu? Devia ter me casado com o Roberto...
Do outro lado da rua, ele pode ver – mesmo que a escuridão obscureça um pouco a ação ¬– um rapaz, morador de rua pelo jeito, se aproximando. Seu coração começa a bater mais forte, uma sensação de frio abate seu estômago. Com as mãos suando ele coloca o carro em primeira marcha. A mulher está falando alguma coisa, ele pode sentir os sons aguçando sua audição, mas não há captação cognitiva de nada do que ela diz. Ele olha o garoto, que se aproxima. Tem alguma coisa nas mãos, uma pedra. A boca seca, ele não aguenta a tensão local, o ar quente de dentro do carro o está sufocando. Quase que pode sentir as moléculas pesando sobre seu corpo. O vapor quente em sua nuca suada, a mulher falando sem parar, o garoto se aproximando... Pensou em ligar o ar condicionado, desistiu. Se precisasse acelerar o carro, para fugir da pedrada, o motor não responderia com toda a potência. O ar condicionado retira a potência do motor. O sinal abre, ele acelera por instinto, canta pneu. A mulher reclama. Ele não está transportando porco, ela diz. Abre o vidro do carro, chove ainda, o ar entra trazendo a vida de volta. Seu corpo se fere com os pingos da chuva. Ele não liga, está a salvo.
— Eu não aguento mais isso – ela, chorando – por quê você não me ama mais? O que aquela mulherzinha tem? Ela é casada com o seu amigo, esqueceu? Pirainha ordinária!
O ar batendo forte em seu rosto lhe dá uma sensação inocente de paz. Estava a salvo. O coração voltava a seu ritmo normal. Olha rapidamente para sua esposa. Não a reconhecia. Não era a mulher por quem se apaixonara perdidamente há cinco anos. Ou era? Talvez a paixão o tivesse cegado naquele primeiro instante. As gotas de chuva em seu rosto, a mulher chorando. De um lado a liberdade que fere os sentidos, do outro, sua prisão à insignificância. Mas era a hora de acabar com isso. Salvara-se há pouco. Deveria agradecer por outra chance de começar a viver de verdade. Onde estavam os sonhos de sua adolescência? Já fora comunista, depois socialista, socialista cristão, e ultimamente até achava que o capitalismo poderia ser, se bem administrado, justo. Não! Não era essa a vida que queria para si. Recomeçaria. Separaria-se, reconstruiria sua vida num pequeno quarto-e-sala e voltaria a escrever suas peças. A vida lhe dera outra chance, não desperdiçaria. Sentia as gotas de chuva em seu rosto, bebia a água limpa que caía do céu...
— Cuidado! Você não está...
E ele ouve o barulho, o pára-choque destruído, controla o carro, não breca. Diminui a marcha e mantém o braço firme. Olha no retrovisor e vê algo se retorcendo no chão – era um mendigo. Pára bruscamente. Homicídio culposo, dois a seis anos, ou eram oito? Era culposo? Sem intenção, culposo. Doloso é quando quer matar. Culposo, então. Matara, em sua distração, um outro ser humano. Uma vida que chegara ao fim. O pobre não tivera outra chance, como ele fora sorteado há pouco. A sua vida acabara também. Seria preso e não aproveitaria a outra chance que a vida lhe dera. Teria de parar para socorrer o pobre, chamar a ambulância, a polícia. Quem sabe, sairia livre? Quem foge do local do acidente tem como agravante a negligência. Até que, sentindo o braço da mulher no seu ombro, voltou atenção a ela. Seu olhar comandante e sua voz decidida, como há pouco, quando o chamara agnóstico egoísta. O mesmo modo de ser, pairando levemente acima dele, como sua mãe quando lhe dava um sermão nos seus dias de criança:
— Não pára, ninguém viu nada. Segue, rápido! Não pára, não pára...


sexta-feira, dezembro 10, 2004

Amor,



o formato do teu olhar, assim como as curvas da Serra do Curral, é como que a moldura perfeita. É você, como ninguém. Seu olhar oriental. Perco-me nesses olhos como entrasse num labirinto em Meca. E, sem rumo, tivesse medo apenas de voltar a me encontrar são e salvo de ti.

As curvas de teu corpo me invadem. Longe, me canso de não te ter. Quase platônico, amo meus desejos. Torto, me agarro ao vento para que me leve o pensamento esmagador, o de nunca me sentir dentro de você.

Sua boca, naturalmente vermelha, mata. Sangue nas ruas frias da noite. Mate-me, pelo amor de Deus! Faça alguma coisa! Mas, de te sentir de longe, duvido que vivas. És Marte, uma quase estrela, vermelha, mas fria.

Sorrir do meu amor é algo que fazemos juntos, mas não por muito tempo. Pois, as balas sem açúcar já estão adoçando minha mente.

Adeus, amor, que a vida é breve...

Carlos


quarta-feira, dezembro 08, 2004

profissional



O poeta senta e escreve
todos os dias, à mesma hora.
Trabalha das oito às dezoito
com horário de almoço
e cafezinho às três e quinze

Ajunta palavras pouco usadas
vernáculos, vocábulos
e adjetivos natos

E no final do dia
cinco poemas e um soneto
Um soneto!
No mês, trinta dias
cento e oitenta poesias

E no seu coração
onde o fogo ardia
hoje bate
a féria do dia.