<$BlogRSDUrl$>

quarta-feira, março 30, 2005

CECÍLIA




Na televisão, o pastor da Igreja da Ressurreição pregava aos fiéis, que levantavam suas bíblias aos céus, como escudos, e clamavam, todos ao mesmo tempo, enquanto ele falava. Cecília mudava de canal automaticamente até parar num filme pornográfico. Duas mulheres vestidas como adolescentes americanas entram num quarto, começam a conversar sobre os meninos do ginásio e se põem a trocar carícias. Ela se excita com os gemidos das garotas, se masturba com a calma de quem mora sozinha há cinco anos e desliga o monitor. A sala escura, o barulho abafado que vem da rua, seu coração batendo pelo ritmo sexual da adrenalina que age, agora fracamente, em seu corpo, ditam o ritmo da sua vida. E tudo parecia igual a todas as noites. O telefone não tocava há dias e o sorvete no congelador já devia ter virado pedra. Ela suspira forte, como que para puxar um pouco de vontade de viver pra dentro dos pulmões, e daí para o sangue, num transporte passivo através daquele ar acre do seu apartamento. Mas lembra que, naquele ambiente saturado da sua própria existência, já não há força vital alguma há meses. Desiste.

No fundo da sala, onde descansa o espelho da avó, ela consegue ver-se parcialmente refletida. Os olhos azuis dão vida à face cansada. Lembra, ela ainda menina, a mãe dizendo que chegaria o dia em que um belo poeta faria uma canção praqueles olhos tão azuis quanto o oceano, que ela ainda não conhecia. E a criança pensava em como seria maravilhoso quando todos fossem ver o mar. O pai levando-a nos ombros água adentro. O gosto de lágrimas infinito do oceano a instigar-lhe os sentidos. Seus sorrisos contidos para não beber daquela água que causava disenteria. Tudo passava pela sua cabeça naquele instante eterno que se repetia todas as madrugadas. E Cecília se perguntava: quando é que meus sonhos morreram? Eles não morreram, responde para si, após alguns segundos. Se ouvisse o telefone tocar agora, todos voltariam. Seus sonhos não morrem, menina idiota, eles apenas se afastam por alguns momentos. Vão arejar a cabeça, pois é impossível conviver permanentemente com o que você se tornara, essa mulher tímida e desinteressante, que não olha ninguém nos olhos.

Continua a se olhar no espelho, coisa rara. Era pequena e levemente acima do peso. Mas, devido à baixa estatura, parecia muito mais gordinha do que era. Lembra da adolescência. Todas as amigas exibindo já os seus seios fartos e ela “magra como uma tábua”, sua avó costumava dizer. Tentou a todo o custo ganhar alguns quilos. Tomou chás de pedra, sulfato ferroso, biotônico. No final, dez quilos mais gorda, ainda sem peitos. Malditos peitos. Pra que servem os peitos? Peito é pra dar leite, alimentar a cria. Cadelas têm sei lá quantos peitos e ninguém se excita com elas. Cecília tinha raiva dos valores de beleza em que não se enquadrava. Começou a usar roupa preta fechada até o pescoço e a achar fúteis todas as mulheres que se enfeitavam feito índios em dia de festa. Não era índia. Queria ser livre como aquelas colegiais de calças jeans largas e desbotadas. Mas não tinha coragem. E o quê as colegas da loja iriam dizer? Eram todas iguais, em seus decotes generosos e calças baixas. Todas umas índias idiotas, pensava com raiva, retirando os olhos do espelho.

Deveria ter a coragem de enfiar goela abaixo aquela cartela de comprimidos que tinha ao lado da poltrona. Colocar o vestido vermelho que comprou há dois meses e que nunca teve coragem de usar. Era isso! Colocaria o vestido, se maquiaria como uma prostituta e tomaria duas caixas de rivotril. Seu coração começou a bater mais forte e um estado de ânimo tomou sua alma. Excitou-se com a idéia da morte. Afinal, para que continuar aquela vida medíocre que levava? Ninguém sentiria sua falta. Não podia ter filhos. “Só com tratamento”, disse o médico, enquanto ela se afundava no sofá em frente. O suicídio poderia ser a saída triunfal de uma vida de coadjuvante.

Vai correndo até o guarda-roupa, seus sonhos chegando um a um, meio desconfiados. Abre o armário e ele está lá. Sua vermelhidão indecente. Retira o cabide e, em frente ao espelho, deixa cair vagarosamente o vestido sobre o colo. A imagem que ela recria na memória não a deixa prosseguir com o sorriso, e uma lágrima salga as bochechas. Foi há dois anos, quando entrou no shopping para comprar um vestido novo, que lhe custaria quase o salário do mês. Tinha um encontro, o primeiro encontro. Aquele rapaz que passava todo dia em frente à loja, olhando-a de cima a baixo. Sentia-se nua e onipotente com aquele olhar de cio. Amava com todas as forças a aparição que se repetia todos os dias, no mesmo horário. Até o dia em que o sonho foi se tornando em realidade e ele se aproximou. Comprou o vestido no mesmo dia. Vermelho, tinha de ser vermelho. Ele não apareceu. O vestido foi pro armário. Semana e meia mais tarde e ele ligou, estava na portaria. Queria entrar. Entrou. Naquela noite ela não se sentiu amada como sonhava. Sem uma palavra amarrada, sem carícias. Sentiu-se só durante todo o ato. Ele nunca mais apareceu. O telefone mudo foi sua recordação.

Ouve um barulho. Todo o seu corpo treme. Era ele! Esperou alguns segundos... mais três batidas na porta. Era agora um rio turbulento, vários sentimentos misturados. Ódio, amor, rancor, esperança... todos os sonhos deliciando-se de desejo. Voltou à sala. Abriria a porta? Seu coração dizia que sim, sempre querendo entregar-se. Mas ela sabia que deveria fazê-lo aguardar. Afinal, foram dois anos de ansiosa espera. Sentou-se na poltrona em frente à TV, abraçou-se ao vestido vermelho até o som das batidas cessarem de cansaço. Adormeceu com um sorriso cheio de amor por si e nem percebeu quando, por baixo da porta, inseriram uma carta em papel azul, que à luz inconstante que vinha da televisão, fazia lembrar um boleto bancário.

sábado, março 19, 2005

Versão - poema



Meu grande amigo, e escritor aguerrido, Leonardo Paixão e sua versão poética do meu último conto. Resta agradecer...

Ontem mataram Carlos

Algumas pessoas que por ali passavam,
distraídas com seus assuntos mais íntimos,
nem notaram seu corpo estendido no asfalto,
que terminava de devolver à terra
o pouco que viveu.

Ontem mataram Carlos.
E uma mulher,
gorda e maneta,
que não saia do seu apartamento há três dias,
chorou uma solitária lágrima de pena de si,
quando viu a notícia no jornal da televisão.

Mataram o sorriso triste das suas limitações.
E a forma alegre de dizer qualquer coisa que fosse,
só para não se entregar.

Ontem mataram Carlos.
E seu corpo sem vida,
confundido com aquela parte esquecida
de cada um que por ali passava,
dava nojo.

Leonardo Paixão sobre conto de Fabiano Novais



sábado, março 12, 2005

Ontem mataram Carlos



Algumas pessoas que por ali passavam, distraídas com seus assuntos mais íntimos, nem notaram seu corpo estendido no asfalto, que terminava de devolver à terra o pouco que viveu.

Ontem mataram Carlos.
E uma mulher, gorda e maneta, que não saia do seu apartamento há três dias, chorou uma solitária lágrima de pena de si, quando viu a notícia no jornal da televisão.

Mataram o sorriso triste das suas limitações. E a forma alegre de dizer qualquer coisa que fosse, só para não se entregar.

Ontem mataram Carlos.
E seu corpo sem vida, confundido com aquela parte esquecida de cada um que por ali passava, dava nojo.

sexta-feira, março 11, 2005

...mataram carlos