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quinta-feira, setembro 16, 2004

Seu João Morro Acima




Equilibrava-se sobre duas rodas como o fez seu segundo filho, naquela noite, a fugir dos homens que entocaiaram Carlos, o primogênito. E seguia pelas ruas semi-desertas do seu bairro de periferia, as luzes dos postes ainda acesas e a criança na garupa, terminando de dormir o sono da noite. Sua merendeira azul, que se soltava vez ou outra, batendo nos cascalhos da rua, ditava o ritmo da travessia. E todas as vezes ele se assustava, e a puxava paternalmente para o colo. Seu João pensava em como o bairro mudara durante aqueles vinte anos e a dor da perda de Carlos ainda apertava seu coração.

A bicicleta ia abrindo o dia, como o fazia há dois anos, desde que Seu João decidira que seu filho mais novo – que usava óculos de grau e meio e entendia as coisas mais fácil que todos na família – não iria estudar na escola daqueles marginais, que estavam tomando conta da vida de toda criança do bairro. Levantava-se às cinco da manhã, acordava o menino, colocava uns biscoitos na sua lancheira, completava com meio pão de sal com margarina, montava o garoto na garupa da bicicleta e rompia hora e meia até o bairro dos italianos. Tinha dormido dois dias na porta daquela escola. Era preciso matricular Elias, seu caçula, para que um dia ele se tornasse doutor, rompendo com o fatalismo que cercava a família.

Na esquina da rua principal com a rua quinze vislumbrou o grupo do Alexandre. Os mesmos meninos que Seu João vira crescer jogando bola nas ruas de terra batida, depois no campinho de várzea onde ele era o treinador e em que hoje fora construído um hipermercado no lugar. Agora, com as pistolas a riste, esses garotos se sentem os donos da rua. Junto ao Alexandre estava Marcelo, o zarolho. Perdera o olho esquerdo como pagamento de uma dívida. Na semana seguinte, com o sangue de seus carrascos ainda quente em suas mãos, tomou o segundo ponto da rua quarenta e oito. Seu João passou de cabeça baixa, como aprendera nesses tantos anos de pobreza sofrida e virtude rígida, tão característica dos homens como ele. Os rapazes cumprimentaram o ex-técnico do Clube Juventus do Almenara e Seu João fez um aceno rápido e continuou, agora com mais força, que já começava a subida.

Haviam se passado três anos desde que Carlos se tornou, pela primeira vez, o goleador do clube de futebol do bairro. O técnico sabia que o garoto seria um jogador profissional. Tinha velocidade, inteligência e a sorte que acompanha todo grande bolero. Mas também um defeito, que preocupava o pai e que foi o motivo da morte precoce, sentia um fascínio irracional pela beleza feminina.

Mariana e uma amiga acabam de descer do ônibus. Seu João teve de frear para não ser atropelado. Controlou bem a bicicleta, se reequilibrou, o garoto se assustou e a merendeira fez outro rasgo ao bater no chão. Mariana baixou os olhos e a garota ao seu lado sorriu, como que forçando alguma alegria no fim da madrugada. Seu João se recompôs ao guidão e fingiu não ver a garota de programa que outrora fora a perdição do filho mais velho. A bela, na época namorada do traficante Toninho, continuou rapidamente seu caminho de volta – ainda com a lembrança fresca do dia em que Carlos, num rompante típico de seu caráter, foi ao encontro do ex-colega de escola, como quando partia pra cima de um zagueiro, dizendo que os deixassem em paz e que Toninho respeitasse a vontade da garota. Ele concordou com a decisão da menina por uma semana, até resolver tudo com o tiro que mataria Carlos e parte de Seu João, para sempre.

Respirou fundo, como o fazia toda vez que seu coração pedia para desistir da vida, e seguiu em frente. O garoto continuou olhando para as duas que se afastavam e sorriu dos traficantes que levantavam suas saias, mesmo sob os protestos daquelas meninas, que queriam chegar logo em casa e dormir ao lado das antigas bonecas de rostinhos sorridentes de porcelana amarelada.

Era preciso continuar, subir o morro.

A cada dia essa escalada ficava mais longa. Suas pernas já quase querendo desistir, parar. O garoto maior, mais pesado. Os livros que se acumulavam na mochila, a idade, que vinha somando os anos e subtraindo as forças. Ele continuava. Suava em cima daquelas duas rodas e seguia até o cume. Prosseguir para que o caçula, o último dos três filhos que ainda continuava em casa, conseguisse vencer o muro invisível que separava esse bairro cheio de desgraças do resto da cidade, que crescia a olhos vistos em seus jardins floridos e fontes luminosas.

Ricardo, seu segundo filho, ainda fugido. Desde aquele dia, quando vingou a morte do irmão, entregando Toninho para o delegado Silva, sabia que estava marcado para morrer. A questão era: quando? Se ficasse em casa do pai, não duraria nem uma semana. E, lá fora, tinha um mundo a descobrir. Viveria intensamente, arriscaria tudo o que deixou passar durante os anos de adolescente naquele lugar dominado pelo medo. Depois do sol, saiu para nunca mais voltar. Seu João ainda seguiu com os olhos o vulto do filho, iluminado pela lua cheia, sumindo atrás de um barracão na esquina. No outro dia, sem lua no céu, Seu João sentiu a certeza de que seria assim a sua nova vida, onde só restavam as estrelas a iluminar suas noites.

A última pedalada e deixou-se levar pela descida, como aquelas aves que pairam no ar com as asas abertas, apenas ancoradas pelo vento. Sentiu a brisa leve no rosto, que trazia novo ânimo, e sentiu-se livre. Parecia ter engolido uma nuvem. E a criança, na garupa, ia perdendo de vista seu bairro, que sumia aos poucos enquanto a bicicleta deixava o topo do morro.


rarefeito



Hoje eu me sinto tão bem que parece que engoli uma nuvem.


segunda-feira, setembro 13, 2004

O Adeus



Foi com os olhos úmidos e o soluço em suspenso que ela ouviu suas últimas palavras, antes dele sumir para sempre da sua vida:
— “Eu adoro um amor inventado...”


sábado, setembro 04, 2004

DO TEMPO DA VIDA



Quero as certezas frágeis,
intensas como o sol.
Paixão sem compreensão.
Essa vida nos cobra sentimentos,
e não suas verdades:
velhas fórmulas empoeiradas pelo tempo,
brinquedos guardados que não servem para nada!

Quero as certezas frágeis,
intensas como o sol.
Querer-te imortal até que o amor se acabe.
E aí, você vira cicatriz dentro de mim.
Quebremos os brinquedos, na alegria
de sorrir descontroladamente!

Vivamos feito heróis acrobatas,
do tempo dos circos malabaristas,
que se equilibram em minha mente.


quarta-feira, setembro 01, 2004

Mesmo assim



Andava pela rua em frente ao ponto de ônibus como se pairasse a dois centímetros do chão. O olhar perdido nalguma estrela do horizonte, a fronte reta e os passos decididos que acompanham os vencedores. Poderia estar pensando na feira do dia seguinte, na flor que esqueceu de molhar, ou em qualquer outra coisa menor ou maior que fosse. O certo é que estava naquele estado de graça de quando nos apaixonamos, quando tudo na vida parece que vai dar certo. Era como se conversasse de igual para igual com Deus numa mesa de bar, brindando aguardente como se fosse champanhe.
Foi quando tropeçou e quase caiu no meio da calçada. Reequilibrou-se apressadamente, baixou o olhar como que a procurar pelo motivo da quase queda, se abraçou à bolsa que carregava, agora seu escudo contra o mundo, e começou a caminhar fiscalizando o chão. Algumas mulheres no ônibus sorriram jocosamente. O que elas não sabiam é que ela continuava soberana, só que se esqueceu disso naquele breve instante que acompanha o percalço.